Gonzaga por Gonzaga


Viver é muito perigoso... mas cada um só vê e entende as coisas dum modo.
João Guimarães Rosa


Não se ocupa com o novo um lugar essencial, sem que o outro o deixe vago.
A paixão move a minha vida. Cantar é essencialmente um estado de paixão. As canções vão aparecendo de um lugar jamais visto, úmidas de rio, de orvalho, escorrendo algas. Ora com perfumados matizes de sabonetes, ora com apetitosos tons de frutas de feira, ora como se fossem românticas cartas. Elas vêm de reinos inexistentes. Soltas, leves e ricas, vestem-se despudoradas e tímidas de flores, conchas e mato entrelaçados em brilho.
Nasci no sertão de Pernambuco. O convívio com as coisas simples e paisagens bucólicas me tornou um homem com enorme apetite pelo brejeiro, pelo agreste, pelo sertão. Essa é a minha partitura na qual se assenta todo o meu movimento em direção à criação. Uma verdadeira viagem de descobrimento pressupõe o encontro com um novo olhar. Um pertencimento.
Quem já experimentou os fundos do rio e o intrincado da mata, sabe do que estou falando, matéria da terra sonorizada através de ritos e sagrados cânticos.
Neste projeto falo de memórias. A memória é moeda de duas faces, faca de dois gumes, perigoso labirinto ou porta dos sonhos. Age de noite e de dia. Ela é um quarto de guardados ao qual nem sempre temos acesso, mas cujos objetos uns dormem e outros acordam. A canção de Junio Barreto, “A quem glória possa ser”, me reconecta a uma arcaica visão e a um primitivo sentimento: à minha primeira experiência diante do mar. De tão belo, levei um susto!... Traduzo hoje como um flagrante de um baile sereno, a calma da cena de um sonho, mas fico também a lembrar de imagens de “Morte em Veneza”, de Visconti, um filme que se inicia e termina no mar, figura do ilimitado, do inumano.
Estar no estúdio é como se estivesse em um templo, em um lugar sagrado. Sinto-me confortável e seguro. O palco representa sofrimento e êxtase. No entanto, é lá que também me faço acontecer. Ele me põe exposto, vulnerável e desconfiado. Enfrentá-lo torna-se um desafio. Termino por amar a cena. Sou um artista em primeiro lugar, me aproprio do canto para dizer o texto, me encarrego de ficar à disposição e a serviço do texto. O intérprete está contido no artista, o artista vem na frente, o intérprete chega depois.
Recife foi a cidade que escolhi para viver. Sua leveza, suas cores e perfumes me levam a experimentar um estar diferenciado no mundo, uma leveza do cotidiano, do pequeno gesto, das pequenas coisas. A leveza que aguarda e guarda o mundo na sua impureza.
Não faço a menor ideia do que é ser moderno. Sou mesmo um sujeito interiorano com sotaques de urbanidade. Me agrada mesmo é a vida filtrada pela memória afetiva, permeada de imagens e acontecimentos assombrosos, felizes ou até mesmo dolorosos. Minha conexão é com o tempo e com a emoção. Aroma de florada de jasmim no quintal com cheiro de terra molhada e perfume de alecrim é uma das coisas de que mais gosto. Sou um convertido. Converti-me ante a força da amizade, da paixão e do amor. É mera vocação para ser kitsch. Não temo o sentimentalismo. Antevejo o fato de que antes de sermos esquecidos seremos transformados em kitsch. O kitsch é como se fosse uma estação intermediária entre o SER e o ESQUECIDO.
Adoro trabalhar, mas o fruto desse trabalho precisa ser, antes de tudo, e no mínimo: prazer! Não me interessa trabalhar com pessoas sem cenários, sem lembranças, sem humor, sem potência criativa, sem histórias para contar e sem intimidade com o silêncio. Me fascina o convívio com pessoas bifurcadas que não temem a salvação porquanto ancoradas no frágil e no precário. Me fascina o convívio com pessoas que não estão atreladas a verdades acabadas, a sistemas fechados, pesados. Por mais que o mundo nos pese sobre os ombros, ainda resta uma saída: rir de nós mesmos, de onde estamos, do lugar aonde chegamos. E nesse riso, nesse gesto tolo, num ato gratuito, voa algo que não se pode prender. São pessoas afins que me ajudam a transformar imagens em profissões de fé, protestos, festas, celebrações, sons e... coreografias.
Dispenso a assepsia de atmosferas CLEAN, tenho como escolha o olhar e a inspiração para o barroco, ele me impressiona, me impregna, me enfeita e me reborda. Acredito que é nos excessos que se encontra o melhor dos extratos do tempo, suas paisagens, suas feições e seus imaginários.Ao fazer um disco, imagino e antecipo a cena. Não ponho música na vida, ponho a vida na música. Preciso da música para dizer de mim. É uma imperiosa necessidade.
Sem nenhum problema, admito que também sou um apreciador de moda. Ela, o figurino, entranha-se-me no abandono das convenções ritualizadas que cadenciam o vestir como estar no mundo, desenquadrando-o das variações rítmicas. O mundo é belo antes de ser verdadeiro, é admirado antes de ser verificado, mundo de extrema solidão que a cada matéria se dissolve e se perde. A felicidade fácil nada prova a não ser a generosidade da vida para com quem a recebe. Ser feliz em meio a tormentos é o desafio e o aprendizado.
Quando penso em realizar um projeto de música, tenho sempre em mente a ideia de ter que lidar com volumes como faz um escultor; com texturas, o designer; modelagem, cortes e caimentos, o estilista... Um projeto de música me envolve ainda em formas e cores, traduzidas pela linguagem do artista plástico; em luz e sombra, essência primeira na arte de fotografar. É como, a exemplo dos camaleões, estivesse sempre rabiscando dunas.
Sempre imagino as cenas da vida na penumbra. Aquela luz construída de sonhos e sons. Aquele clima noturno e aquelas résteas de luz que vêm da memória guardada. Acabo de ler “Viagem à roda do meu quarto”, de Xavier de Maistre. Está escrito na orelha do livro: publicado em 1794, “Viagem à roda do meu quarto” é uma das obras centrais para a formação do romance moderno. Sou um delirante da palavra. Deliro com a palavra, sonho com a imagem. O detalhe me fascina; o detalhe do detalhe, como os olhos num rosto ou um musgo sob uma árvore. A alegria e a felicidade produzem em mim um certo estado de sonolência e desleixo. Tudo que me emociona também me provoca uma certa tristeza.
Venho de uma família exemplarmente religiosa. A religião é o meu dique. Desde que me entendo de mim, sempre gostei de entoar cânticos sagrados. Eles exercem sobre meu espírito, uma força e uma enorme intimidade com o mistério, com o tempo, com a finitude. São cânticos de onde se vê... Lembro aqui de Joaquim Cardozo: “De tudo faço um sonho imaginoso”.
Esse é o meu processo; ele se alimenta de contradições: feminino e masculino, sonho e pesadelo, doçura e agressividade, vida e morte, branco total e preto absoluto, crença e agnosticismo, fome e banquete, floresta e caatinga, verdades e mentiras, orgia e solidão, rural e urbano, materialidade e êxtase.
Constato cada vez mais que a arte é uma confissão e que a vida não basta.
A obra é seu ato.

Gonzaga Leal

Deixe sua mensagem